sexta-feira, 29 de junho de 2012

Fogueiras da alma


Foto Maribel Felippe, Fogueira junina de 2011 da nossa Escola

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Fogueiras da alma
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Paulo Mendes  (*)
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As imagens perdem a nitidez em junho. A gente olha, mas pouco enxerga através dos vidros embaçados. Surgem nevoeiros semoventes que, apenas ao chegar bem perto, se transformam em gente, bicicletas, cavalos, e carroças. Meus recuerdos também são brumas envoltas num passado alvo, recoberto por brancuras de ar. Ouço cordeonas de oito baixos e vejo espectros de parentes e amigos ao longe, envoltos em névoa, a abanar suas saudades. Balões, pinhão assando nas chapas avermelhadas dos fogões, gosto de quentão na boca. O calor de uma fogueira ardendo dentro da noite imensa. Então tudo volta, de novo, na meninice reinventada, no calor dos lenços e palas, e na lã das boinas, numa mistura insólita de sons e sombras, imagens contrastadas como uma cena triste de filme noir.
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Nós, a gurizada, passávamos os primeiros meses do ano a catar gravetos, moirões, taquaras podres, varas de eucalipto, tocos de cinamomo, escoras de ciprestes, caibros de cabriúva, cambões extraviados, cangas quebradas, tábuas apodrecidas, restos de construção. Tudo que parecesse queimar. Minha mãe, uma ativista ecológica campeira, sempre alertava. "Só não cortem mato nativo." Nós respeitávamos. Juntávamos até pneus velhos na oficina dos Mello, ali perto dos trilhos. Aquilo se transformava em uma montanha que seria usada na fogueira na noite de São João.
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Ah, meus amigos, eram lindas aquelas festanças que fazíamos, eu, o Luiz e o Clécio Dal Forno, e que atraíam as famílias para brincar, comer e dançar ao som da gaita do velho Lara. Uns traziam quitutes, pamonhas, rapadurinhas, canjica. A cachorrada brigava, os vizinhos se abraçavam, os primos namoravam escondido. A Verinha, gringa sapeca, vinha pela mão da Nona, com seu vestido colorido, enrolada em mantas, com longas tranças e sempre mentia: "Si tu salta il fuoco io te do um bacio, é vero". Eu pulava e ela dizia que eu não tinha conseguido. Então pulava três, cinco, dez, 20, até morrer de cansaço, mas quando ia cobrar o beijo ela já tinha ido embora. Nunca me beijou. Não era vero. Passaram-se muitos anos até que beijei outros lábios, mas nunca esqueci aquela boquita encarnada, de onde brotava uma voz cândida e italiana, como desses pássaros matinais.
Hoje, depois de tanto tempo, compreendi que a vida também é assim como aquelas fogueiras que aqueceram nossa infância, lá na Vila Rica. No início crepitam forte, alumiam, clareiam tudo, fazem barulhos, as labaredas dançam, soltam faíscas e depois, lentamente, vão mermando, devagar, até sobrarem brasas. Essas também vão sumindo, perdendo o calor. Ao fim, por mais que se mexa no borralho, restam só as cinzas mortas...

Paulo Mendes
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(*) Paulo Mendes publica semanalmente a coluna Campereada no jornal Correio do Povo 
pmendes@correiodopovo.com.br
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