domingo, 20 de junho de 2010

O Memorial de Saramago

Saramago: um escritor tão grande como o foram seus compatriotas
Luis Vaz de Camões e Fernando Pessoa

Na manhã de sexta-feira, 18 de junho, em sua casa na ilha de Lanzarote, arquipélago das Canárias, Espanha, morreu José Saramago, o primeiro escritor de língua portuguesa a ganhar o Nobel de Literatura. Mas o que dizer de Saramago quando tudo o mais já foi dito? Que deixa órfãos leitores do mundo inteiro? Que foi o mais doce dos comunistas? Que como ateu tinha mais benevolência pela humanidade do que muitos dos que se dizem cristãos? Que deixou viúva a sua Pilar, a feliz escolhida que privou de seu amor outonal? Que filho e neto de analfabetos, tornou-se um dos mais brilhantes escritores de seu tempo com suas histórias mágicas de parágrafos intermináveis? Saramago foi tudo isso e muito mais. Como autor, é dono de uma obra coerente e crítica em toda a sua magnitude e de uma escrita singular, sui generis, plena de uma sintaxe original e não muito fácil aos ainda não iniciados. Permeando realidade e fantasia, sua escritura chama o leitor à consciência e à reflexão, apresentando com ironia e agudeza as dores da sociedade e do ser, enquanto humano. Seus personagens povoam o imaginário dos leitores com uma humanidade tamanha que chega a ser pungente. Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, Jesus é apenas um homem comum, o filho de José, mais humano que divino. Em Ensaio sobre a cegueira, a população é tomada por uma cegueira repentina e, abandonados pelas autoridades, todos passam a lutar por suas necessidades básicas, expondo seus instintos mais primários. A partir daí, tentam desesperadamente recuperar a humanidade perdida. Em O Memorial do Convento, os doces personagens Baltazar Sete Sóis e Blimunda Sete Luas vivem um amor comovente em meio à construção de um grande convento, obra descomunal em que milhares de vidas humanas são desperdiçadas diante das agruras que enfrentavam os miseráveis do século XVIII. Os miseráveis de sempre. Contestado em seus argumentos, Saramago era engajado como eram engajadas as histórias que contava. Para ele, era questionável a distinção entre autor e narrador, tão propalada pela crítica literária. Entendia ele que o narrador da história refletia o pensamento do autor que a escrevera. Daí comprovar-se o engajamento do homem Saramago, de suas ideias como formadoras de sua obra. Escritor sem formação acadêmica e de sucesso tardio, dizia que teve a sorte de fazer tudo o que havia para fazer, já na idade avançada, porque se tivesse feito aos 50, já não teria mais o que fazer. Pensava que, se tivéssemos a certeza de ter uma vida longa, talvez valesse a pena guardar para a parte final dela aquilo que tínhamos de melhor. E isso ele fez com maestria, nos deixando agora, aos 87 anos. Dizia que escrevia porque não queria morrer. E nesse momento de perda, só nos resta dedicar a ele, diante de seu próprio memorial, a sábia fala da personagem Blimunda: O pecado não existe. Só há morte e vida. A morte vem antes da vida, morreu quem fomos, nasce quem somos, por isso é que não morremos de vez.

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Maribel Felippe

Advogada, jornalista, professora de línguas portuguesa, inglesa e literatura.

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4 comentários:

Luiz Carlos Vaz disse...

Muita coisa já foi publicada sobre o Saramago nestes últimos três dias. Este, no entanto, foi um dos melhores textos que li. Parabéns para a autora.

emefjoãodasilva disse...

Obrigada por seu comentário! Isso muito nos honra quando se sabe que tanto sobre Saramago já foi escrito e bem escrito. Pensei que era meu dever, como responsável pelo blog da escola, comentar sobre tão ilustre figura cuja obra irretocável muito tem a encantar aos nossos estudantes e pessoas iniciadas na arte da leitura.
Maribel

Unknown disse...

Oi Maribel! Adorei o blog.
Alguns textos que li sobre Saramago mencionavam coisas menos importantes como richas e picuinhas entre Brasil e Portugal, coisas que nada acrescentam, ou melhor podem até dispertar antipatia pelo escritor antes mesmo de conhecê-lo.
O teu texto se atém ao que realmente importa:a Literatura.
Prabéns.
Jeane Kaufmann

emefjoãodasilva disse...

Que bom que gostaste do Blog, Jeane! Tua opinião de apreciadora de literatura é muito importante para nós! E esse texto, sobre Saramago, foi escrito num momento de muita emoção pela perda do grande escritor que ele foi. Apresentei o trabalho do Blog no 10º poder escolar que tá rolando aqui em Pelotas. Foi bem legal! Continua nos prestigiando!

Maribel Felippe